Este “Rogue One – Uma História Star Wars” é um capítulo bem diferente da saga espacial criada por George Lucas em 1977, tanto em tom, quanto em ritmo. Superficialmente, o longa dirigido por Gareth Edwards (“Godzilla”) e escrito por Chris Weitz (“Um Grande Garoto”) e Tony Gilroy (trilogia “Bourne”), a partir de um plot de John Knoll (supervisor de efeitos visuais de praticamente todos os filmes da saga) e Gary Whitta (“O Livro de Eli”), é mais acelerado e tem cenas de ação mais intensas e urgentes que os episódios numerados da série, com a violência que acontece dentro da narrativa possuindo mais peso, o que deve afastar as crianças do filme.
Em uma análise mais detalhada, a ruptura deste spin-off em relação aos filmes principais é mais profunda. A despeito de se passar no mesmo universo que os episódios I a VII já lançados, a abordagem temática de Edwards, Weitz e Gilroy é radicalmente diferente.
Na trama, que se passa imediatamente antes do longa original de 1977, Jyn Erso (Felicity Jones), uma rebelde criminosa, é recrutada pela Aliança para contatar o extremista Saw Gerrera (Forrest Whitaker), que supostamente teria informações sobre a nova superarma imperial, a Estrela da Morte, informações estas obtidas com o cientista imperial Galen Erso (Mads Mikkelsen), pai da garota e um dos responsáveis pela criação da dita arma, nada menos do que a famigerada Estrela da Morte.
Jyn, ao lado do Capitão Anders (Diego Luna) e do fiel droide deste, K-2SO (Alan Tudyk), acabam tendo a missão de roubar os planos da Estrela da Morte, tendo a ajuda do piloto desertor Bodhi Rook (Riz Ahmed), do guerreiro cego Chirrut Îmwe (Donnie Yen) e do parceiro deste, Baze Malbus (Wen Jiang).
Sai a fantasia encrustada na Jornada do Herói de Joseph Campbell e nos filmes de samurai de Akira Kurosawa (embora a cinessérie japonesa sessentista “Zatoichi” encarne em Chirrut) e entra uma história de guerra nos moldes de “Os Doze Condenados” (Robert Aldrich, 1967), “Os Canhões de Navarrone” (J. Lee Thompson, 1962) e até mesmo toques de “Exército das Sombras” (Jean-Pierre Melville, 1969) e “Bastardos Inglórios” (Quentin Tarantino, 2009).
Com essa mudança de paradigma, embora o Império continue retratado como o mal absoluto, surgem tons de cinza na antes imaculada Aliança Rebelde, que acabam por enriquecer esse movimento de resistência, seus sacrifícios e ideais.
O arco narrativo de Jyn e sua transformação de cínica insurgente em uma esperançosa rebelde sustenta o roteiro e Felicity Jones o vende muito bem para o público. A protagonista viu seu mundo ruir quando criança por conta da guerra contra o Império e viu seus pais desistirem de uma vida de luxo por enxergarem a verdade por trás do governo de Palpatine e compartilha dessa paixão justamente por saber
Do mesmo modo, o solitário Capitão Anders de Diego Luna surge realmente como um soldado que, outrora idealista, teve de sacrificar muito de sua humanidade por uma causa que o acompanha desde a infância. Suas interações com Jyn e com o dróide K-2SO ressaltam o quanto, mesmo em um nível subconsciente, Anders busca uma conexão. O autômato vivido por Alan Tudyk, aliás, funciona como personagem de ação e um providencial alívio cômico, com algumas piadas que amenizam o clima sóbrio do filme, sempre de maneira orgânica dentro da narrativa.
A dupla Chirrut Îmwe e Baze Malbus nos mostra o lado religioso da Força, com os antigos guardiões do templo Jedi representando o crente (inclusive com sua oração ou mantra) e aquele que perdeu a fé, sem contar que o guerreiro cego vivido por Donnie Yen constantemente rouba o filme em suas cenas de ação. O carismático Bohdi de Riz Ahmed possui uma história interessante, por ser um nativo de Jedha (daí seus traços não-caucasianos), recrutado pelo Império que desertou para a Aliança, enfrentando a desconfiança (e até mesmo tortura) para provar sua mudança de lado.
Forrest Whitaker vive um personagem acometido pela loucura de uma guerra tão longa, que lhe roubou não só boa parte do seu corpo, mas também de sua alma, conforme demonstra não só sua aparência física, mas suas ações e voz, tudo resumido na dor quando ele fala que sobrou tão pouco dele para morrer. O sempre competente Mads Mikkelsen é efetivo em todas as suas cenas e se mostra (conscientemente) contido do ponto de vista emocional, o que acrescenta uma profundidade a mais para o seu complexo Galen Erso – e se há uma constante em todos os filmes da saga Star Wars é na complexidade das relações paternas, tradição honrada por Mikkelsen e Felicity Jones.
Do lado imperial, o diretor Krennic de Ben Mendelsohn se mostra interessante justamente por ser menos poderoso (e portanto mais ambicioso) que os figurões imperiais, como Darth Vader (novamente com a imponente voz de James Earl Jones) e o Governador Tarkin (Peter Cushing revivido via computação gráfica). Mendelsohn encarna com perfeição a desumanidade de Krennic, em sua busca por ser reconhecido por seus líderes e é incrível notar quão bem o ator expressa a constante frustração do seu personagem.
Sobre a recriação de Peter Cushing, o ator é citado nos créditos (junto de seu título de Ordem do Império Britânico). No entanto, por mais competente que seja sua versão digital e quão incrível seja rever o único personagem além do Imperador a ser respeitado por Darth Vader, sua presença se torna uma distração em um longa tão mais pé no chão e onde boa parte das criaturas são feitas através de efeitos práticos. É estranho ver um personagem humano parecer mais artificial que, por exemplo, um almirante mon-calamari, e talvez tivesse sido mais feliz a escalação de um ator parecido com Cushing para o papel, como foi feito com a irlandesa Genevieve O’Reilly, que encarnou com perfeição a senadora rebelde Mon Mothma, vivida nos anos 1980 pela atriz Caroline Blakiston.
Se as alegoria políticas na trilogia original eram quase inofensivas e se mostravam (em sua maioria) relativamente sutis na trilogia de prequels e na nova trilogia aberta por “Star Wars – O Despertar da Força” (J.J. Abrams, 2015), aqui elas surgem com força – sem trocadilho – total, por vezes de maneira surpreendente.
O visual e os métodos dos rebeldes extremistas de Saw Gerrera remetem aos jihadistas de facções, como a al-Qaeda ou o Estado Islâmico, sem contar o fato de que seu quartel general é em uma caverna. O fato do planeta Jedha, onde eles organizam sua resistência, também ser uma área sagrada para os (quase) extintos Jedi também parece uma nada sutil referência a Jerusalém, embora visualmente ele lembre mais a Bagdá pós-Saddam, especialmente na ocupação por tropas militares estrangeiras.
Ademais, mesmo que o racista Império (formado exclusivamente por homens brancos, em contraste a uma multiétnica Aliança Rebelde) seja o nazi-fascismo da Galáxia muito distante encarnado, algumas de suas atitudes remetem sim aos Estados Unidos. Ora, ver uma superpotência usando uma arma de destruição em massa em duas cidades habitadas como meio de intimidação lembra demais o uso das bombas atômicas pelos EUA contra o Japão no fim da Segunda Guerra Mundial. Até mesmo o isolamento que os cientistas imperiais se submetem remete sim ao Projeto Manhattan que deu origem à Bomba-A.
Essa maior complexidade no pano de fundo da trama elaborado por Weitz e Gilroy se reflete na condução da narrativa de Edwards. O cineasta, ao lado do diretor de fotografia Greig Fraser (não por acaso, também responsável pela fotografia de “A Hora Mais Escura”). Ao colocar personagens mais falíveis e humanos ao invés de arquétipos mitológicos no centro da ação, Edwards também aproximou o público do sofrimento e da luta destes.
A direção de arte, incrível, segue fielmente os preceitos realistas do longa original (até mesmo na recriação de certos cenários partilhados pelas duas histórias) e é possível ver o gasto em cada objeto visto em cena. Ademais, ouvindo a reclamação de alguns dos fãs sobre a falta de inovação nos planetas mostrados em “O Despertar da Força”, os mundos aqui retratados são bem diferentes entre si e daqueles vistos anteriormente na série, com destaque para Jedda e o tropical mundo de Scariff (que remete ao front do pacífico da Segunda Guerra Mundial).
Assim, as batalhas que vemos em cena, sejam em terra, ar ou espaço são mostradas de maneira mais brutal e dolorosa, com referencias do mundo real sendo usadas quando possível. Até mesmo o impacto dos tiros da Estrela da Morte, vistos de maneira despersonalizada e plasticamente interessante em “Guerra nas Estrelas” (1977, George Lucas) e “O Retorno de Jedi” (1983, Richard Marquand) – algo inclusive mencionado por Krennic -, aqui é colocado do aterrador ponto de vista da população-alvo, dando ao público uma das cenas mais dolorosas e marcantes do filme, no abraço de dois personagens que encaram a inevitabilidade do fim.
Apenas em uma breve e chocante cena, onde o foco é um personagem realmente mitológico, Edwards e Fraser quebram seu retrato quase documental das batalhas e o diretor retorna para sua filmografia mais voltada para o terror fantástico, naquele que já nasceu como um dos mais impactantes momentos da saga (e um dos melhores do cinema americano em 2016).
Este “Rogue One – Uma História Star Wars” não deve ressoar tanto nos fãs mais jovens por ser carregado demais, mas é exatamente a prequel que aqueles que cresceram (e essa é a palavra-chave) com a série esperavam, demonstrando com sucesso o potencial que esses derivados possuem de explorar o vasto universo da Saga por outros pontos de vista fora da família Skywalker. Recomendado.